por Rafael Lancellote*
No artigo anterior, analisamos os grandes nomes e concepções filosóficas sobre Ética desde a Antiguidade até a Modernidade. Hoje, abordaremos a principal corrente ética da contemporaneidade: o Existencialismo.

Primeiramente torna-se necessário compreender que o século XIX foi marcado por críticas destruidoras ao projeto iluminista e aos três pilares que o sustentava: a razão absoluta, a moral judaico-cristã e a tecnocracia burguesa-liberal.

Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche e Karl Marx tornaram-se referência desse momento histórico de crepúsculo do projeto iluminista.

Desconstrução da reflexão ética
A desconstrução desses pilares traz a reflexão ética para outro patamar, uma vez que os princípios racionais de determinação da conduta correta perdem validade rapidamente, devido a um dinamismo nunca antes visto na história da humanidade; em que descobertas tecnológicas e científicas trazem novas soluções (e problemas) ao convívio social; em que a família, a tradição religiosa e os valores morais se esvaem frente ao crescente individualismo pós-moderno.

Esse momento foi captado com maestria por Marx e Engels na obra “Manifesto do Partido Comunista” de 1848, no qual consta o famoso trecho: “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção constituía, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distingue a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas…”

Ou mesmo quando Nietzsche, em “Assim Falou Zaratustra”, declara: “Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!”

Esses trechos emblemáticos marcam a passagem de um mundo estável, marcado por estruturas bem ordenadas e rigorosas de vivência para um mundo em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, em que os valores deixam de ser universais e passam para o campo individual, em que a liquidez das relações reflete a liquidez do mundo. É a partir daí que devemos começar a análise da Ética na Pós-Modernidade e é a partir daí que o Existencialismo surge como corrente ético-ontológica essencial na compreensão da contemporaneidade.

O Existencialismo
O existencialismo afirma a prioridade da existência sobre a essência, segundo a célebre definição do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “A existência precede e governa a essência.” Essa definição funda a liberdade e a responsabilidade do homem, visto que ele existe sem que seu ser seja predefinido. Durante a existência, à medida que se experimentam novas vivências, redefine-se o próprio pensamento (a sede intelectual, tida como a alma para os clássicos), adquirindo-se novos conhecimentos a respeito da própria essência, caracterizando-a sucessivamente. Esta característica do ser é fruto da liberdade de escolha.

O indivíduo, no princípio, somente tem a existência comprovada. Com o passar do tempo ele incorpora a essência em seu ser. Não existe uma essência pré-determinada. Com esta frase, os existencialistas rejeitam a ideia de que há no ser humano uma alma imutável, desde os primórdios da existência até a morte. Esta essência será adquirida através da sua existência. O indivíduo por si só define a sua realidade.

O existencialismo representa a vida como uma série de lutas. O indivíduo é forçado a tomar decisões que reforçam suas características de ser racional: pensar, questionar. A liberdade para os existencialistas se configura não como uma benção, mas como uma maldição e fonte da angústia existencial. As regras sociais são o resultado da tentativa dos homens de planejar um projeto funcional. Os existencialistas explicam por que algumas pessoas se sentem atraídas à passividade moral baseando-se no desafio de tomar decisões. Seguir ordens é fácil; requer pouco esforço emocional e intelectual fazer o que lhe mandam. Se a ordem não é lógica, não é o soldado que deve questionar.

Deste modo, as guerras podem ser explicadas, genocídios em massa podem ser entendidos. As pessoas estavam apenas fazendo o que lhe foi dito. Assim Sartre constrói o conceito de “má-fé”, que parte da tentativa de negação da condição de liberdade na qual o ser humano se encontra a fim de se eximir das responsabilidades e das angústias atrelada a ela. Isso resulta em um fracasso, pois negar a própria liberdade só é possível exatamente por sermos livres, logo a má-fé, longe de ser um remédio para a angústia do existir, acaba por aprofundá-la.

Por isso, para os existencialistas, é importante compreender a condição humana e a noção de absurdo que se impõe a todos nós. O absurdo contém a ideia de que não há sentido a ser encontrado no mundo além do significado que damos a ele. Esta falta de significado também engloba a amoralidade ou “injustiça” do mundo. Isto contrasta com formas de pensar em que “as coisas ruins não acontecem para pessoas boas”; para o mundo, falando-se metaforicamente, não há tais coisas como: “pessoa boa” e/ou “uma coisa má”, o que acontece, acontece, e pode muito bem acontecer a uma pessoa “boa” como a uma pessoa “ruim”. Por conta do absurdo do mundo, em qualquer ponto do tempo, qualquer coisa pode acontecer a qualquer um, e um acontecimento trágico poderia cair sobre alguém em confronto direto com o Absurdo.

Por hoje é só. Na próxima semana falaremos sobre Filosofia Política e seus principais pensadores. Até lá!

*professor de filosofia e sociologia do Cursinho da Poli

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