por Décio Cavalheiro*

A área que constitui a atual Síria registra uma das mais antigas ocupações humanas. A meio caminho entre a antiga Caldéia (Mesopotâmia, atual Iraque) e o Egito, o chamado Crescente Fértil, sua capital Damasco é talvez a cidade mais antiga do mundo, com mais de sete mil anos de existência ininterrupta. Ponto de passagem entre os três continentes que constituem o Velho Mundo (África, Ásia e Europa), ocupa uma posição estratégica, espécie de “ponte” que liga o Ocidente e o Oriente. Essa posição fez com que fosse cobiçada e conquistada, desde a antiguidade até os dias de hoje.

Vizinha da antiga Galileia, foi uma das primeiras regiões para onde se expandiu o Cristianismo. Quando, no século IV, essa religião foi reconhecida como a oficial do Império Romano, a Síria se tornou um dos centros mais importantes do mundo cristão.

O século VII, que viveu na região a primeira grande expansão do Islã, assistiu Damasco se tornar o centro do mundo muçulmano, capital de extenso império que se estendia dos Pirineus ao rio Indo. Conquistada pelo Império Turco Otomano no início do século XVI, a Síria permaneceu sob aquela autoridade até o final da Primeira Guerra Mundial.

Durante essa guerra, França e Inglaterra, que combatiam o Império Turco, assinaram em 1915 o Tratado Sykes-Picot, pelo qual se dividiram artificialmente os restos dos otomanos quando derrotados, ficando a província turca da Síria atribuída à França, para se tornar independente em 1946, após o término da Segunda Guerra. 

Esse rápido panorama histórico permite compreender algo dos problemas contemporâneos vividos pela Síria. Com fronteiras desenhadas em 1915 obedecendo aos interesses de França e Inglaterra, e sem considerar as características de suas populações, o país engloba em seu território vários grupos étnicos, culturais e religiosos, herança mesma de sua história. 90% de sua população é árabe, 9% curda, ao lado de outras minorias. Quanto à divisão religiosa, 74% são muçulmanos sunitas16% muçulmanos xiitas e 10% cristãos. O tradicional domínio econômico dos sunitas, em oposição aos demais grupos considerados heréticos, trouxe grande instabilidade política após a independência, o que facilitou a ascensão ao poder da família Assad em 1971, pertencente a uma das facções dos minoritários xiitas, os alauítas.

Desde a criação do Estado de Israel em terras até então árabes, em 1948, os sucessivos governos sírios estiveram entre seus oponentes mais radicais. Na guerra dos Seis Dias (1967), Israel conquistou da Síria as colinas de Golã, área das nascentes do rio Jordão, o mais importante curso de água daquela região semidesértica. Esse conflito local se ampliou para regional após a Revolução Islâmica no Irã (1979), país majoritariamente xiíta e, a partir de então, inimigo confesso de Israel. Ampliou-se para mundial o conflito, Estados Unidos defendendo Israel e União Soviética (e hoje a Rússia) defendendo o governo sírio. O apoio russo é compensado pela concessão de uma base naval no Mediterrâneo, a única daquela potência militar naquele mar.

O governo sírio, nas mãos da família Assad, é um dos mais laicos do Oriente Médio. Esse governo de décadas, nas mãos de um grupo minoritário, foi abalado pela chamada Primavera Árabe e pelas consequências advindas da invasão estadunidense no Iraque (2003).

Primavera Árabe, iniciada em 2011 na Tunísia (norte da África), que se opôs a governos há muito tempo no poder, se espalhou até áreas da península arábica, com resultados distintos em cada país. Na Síria, resultou em guerra civil

A invasão estadunidense no vizinho Iraque depôs o governo laico da minoria árabe sunita e o entregou à maioria árabe xiíta. Sunitas iraquianos, despojados do poder, uniram-se a antigos grupos fundamentalistas sunitas (Al Qaeda) e criaram o ainda mais radical Estado Islâmico, para combater os “heréticos” xiitas, majoritários no Iraque e minoritários, mas no poder, na Síria. Esse Estado Islâmico, que chegou a ocupar áreas consideráveis do Iraque e do norte e leste da Síria, vem sofrendo derrotas neste último país com o avanço das tropas governamentais.

Potências regionais se alinham na guerra civil síria, iniciada no mesmo 2011. A República Islâmica (fundamentalista) do Irã apoia o governo (laico) de Assad. Arábia Saudita, sunita, apoia os rebeldes (há quem afirme que financie o Estado Islâmico). Os Estados Unidos, potência global, que tem em Israel seu mais importante aliado no Oriente Médio, combate o governo sírio; Rússia, potência regional, apoia os Assad.

A guerra civil na Síria, conflito interno com repercussões regionais e mundiais, já causou mais de quatrocentas mil mortes e um número de refugiados superior a cinco milhões de pessoas, abrigadas majoritariamente nos vizinhos Jordânia, Líbano e Turquia, além de engrossar as multidões que buscam paz e trabalho na Europa ocidental, onde geralmente são mal recebidos.

*professor de geopolítica do Cursinho da Poli

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