Por Elias Feitosa*

Marchar no coração da cidade do Rio de Janeiro, reunindo estudantes, intelectuais, artistas, religiosos, políticos e inúmeros cidadãos comuns, tendo por objetivo manifestar sua opinião. Poderia ter sido apenas um evento espontâneo, característico das dinâmicas sociais de um país democrático, porém o Brasil estava muito longe disso em 1968: vivíamos, desde 31 de março de 1964, um regime de exceção que depôs o presidente João Goulart e implantou, através de um golpe de Estado, a ditadura militar, que contou com apoio de parte da sociedade civil. Eram os “anos de chumbo.”

Em 26 de junho de 1968, a partir das 14 horas, concentravam-se cerca de 50 mil pessoas na Cinelândia, atendendo a uma articulação dos estudantes que, apesar da clandestinidade da UNE (fechada desde 1966), buscaram uma reação em virtude do contexto repressivo que agravara-se dia a dia: em março de 1968, a repressão militar contra um protesto pelo fechamento do restaurante universitário “Calabouço” provocou a morte do estudante Edson Luís (secundarista de 18 anos) com um tiro à queima roupa dado por um soldado da Polícia Militar. A missa de Edson Luis, realizada na Igreja da Candelária provocou novas manifestações contra a ditadura e a repressão da polícia sobre os estudantes, religiosos e outros presentes foi violenta, inclusive, com a ação da cavalaria contra os civis.

Com o avançar da tarde, no dia 26 de junho, chegavam mais e mais pessoas. Lá pelas 15 horas, a multidão tinha dobrado. Os presentes vinham dos mais variados segmentos da sociedade: cerca de 150 padres encabeçados pelo cardeal D. Jaime Câmara, deputados da oposição à ditadura como Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis; artistas como Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, Renato Borghi, Nara Leão, Nana Caymmi, Vinicius de Morais; a escritora Clarice Lispector; do teatro e cinema Norma Bengell, Marieta Severo, Grande Otelo, Paulo Autran, José Celso Martinez Corrêa e entre tantos milhares de anônimos, de classes e profissões distintas, mas com um clamor comum: o protesto veemente contra o regime ilegítimo que controlava o país desde 1964 com a postura de terem trazido a “Salvação da Nação.”

A passeata trazia cartazes protestando contra a ditadura e seus mecanismos: prisões arbitrárias, censura, violência desmedida que ia da repressão, passando pela tortura e morte, de modo tão frívolo que poderia se tratar de um filme de horror. Deslocaram-se por três horas e concluíram o ato em frente à Assembleia Legislativa, num ato pacífico mas sob forte vigilância policial que acompanhou todo o evento, dessa vez, sem atacar os manifestantes. Porém, muitos agentes do DOPS, responsável por parte da repressão e do SNI (Serviço Nacional de Informações) faziam o mapeamento e fichamento dos subversivos.

Como desdobramento imediato, uma comissão foi formada para conversar com o presidente da República, general Arthur da Costa e Silva: Vladimir Palmeira e Luís Travassos (ambos da UNE), o padre João Batista, o professor de Filosofia da UFRJ, José Américo, o escritor Hélio Peregrino, os estudantes Marcos Medeiros e Franklin Martins e Irene Pappi, como mãe de um estudante.
Apesar da conversa não ter sido muito fecunda: as repressões não cessaram e, pelo contrário, cresceram em diferentes contextos. No mesmo dia da Passeata, que fora pacífica, o grupo terrorista de esquerda VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) lançou uma caminhonete com cerca de 50kg de dinamite contra o portão do quartel-general do II Exército em São Paulo, vitimando o soldado Mário Kozel Filho, de 18 anos, que servia ali naquele contexto.

Em 2 de agosto daquele ano, Vladimir Palmeira foi preso e no dia seguinte cerca de 650 estudantes. Novas prisões no dia 4, com 300 estudantes detidos em São Paulo. Em 21 de agosto, o Congresso Nacional recusou aprovar a anistia dos estudantes presos. A UNE tentou se rearticular numa ação logisticamente complicada: um congresso sigiloso no interior de São Paulo, na pequena cidade de Ibiúna, que foi denunciado e rendeu 920 presos, inclusive, as principais lideranças em 12 de outubro de 1968. No mesmo dia, um jovem militar estadunidense, suspeito de ser agente da CIA, o capitão Charles Rodney Chandler, fora metralhado na porta de sua casa, numa ação da VPR.

O pano de fundo estava traçado para o desfecho do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, responsável pelo fechamento do Congresso e a extinção dos resquícios de cidadania ainda ali sobreviventes, num processo que aprofundou a violência da repressão e, ao mesmo tempo, instou uma precária resistência, que foi lentamente sufocada ao longo do governo Medici (1969-1974) e, assim, uma concentração tão grande de pessoas nas ruas só voltaria a ocorrer com as greves dos metalúrgicos, entre 1979-1980, e o Movimento das Diretas Já, em 1984.

O mais estranho disso tudo é, passados 33 anos do fim da Ditadura, voltam a aparecer pessoas exaltando este período, seja por de fato o valorizarem, seja por ignorância histórica e, assim, voltamos a ver clamores por uma nova intervenção militar a fim de salvar o Brasil. E tal fato é preocupante, pois numa democracia de menos de 50 anos como a brasileira, este posicionamento pode ser fatal para a sua sobrevivência.

*professor de história do Cursinho da Poli

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