por Luciano Carvalho*

É com grande perplexidade que temos acompanhado nos noticiários desde o início do ano a grave crise que acomete a segurança pública no Brasil. Cenas grotescas são narradas por reportagens sobre a barbárie que ocorre nas principais penitenciárias do Brasil.

A barbárie se instalou de forma quase que generalizada nos presídios da Amazônia e do Nordeste, produzida por um verdadeiro cenário de guerra civil, onde o protagonismo envolve as principais organizações criminosas do país. Este quadro produzido pela disputa de poder está na vanguarda dos interesses das facções criminosas PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho).

Podemos afirmar sem sombra de dúvidas que estas duas organizações surgem como resultado da falência do Estado enquanto regulador social, ou necessariamente com interesse de manutenção do bem estar social ao qual seria o fim último do mesmo. O conceito weberiano de “monopólio da violência” parece cada vez mais distante da figura da organização burocrática do Estado, uma vez que estas associações criminosas ganharam profundidade há pelo menos 30 anos.

O Comando Vermelho (CV), organização criminosa do Rio de Janeiro, surge de uma estratégia estúpida da ditadura civil-militar para neutralizar os movimentos guerrilheiros de orientação socialista que se formaram para combater o Estado de exceção instalado pelo golpe de 31 de março de 1964. A prática consistia em encarcerar presos políticos junto de criminosos perigosos, na perspectiva de que a luta armada e politizada sucumbiria aos criminosos. Na realidade, a ditadura subestimou a capacidade organizacional e a inteligência dos criminosos, que souberam observar e aprender as táticas de guerrilha confabuladas entre os guerrilheiros presos políticos.

Daí surge, no estado do Rio de Janeiro, o Comando Vermelho, organização temida durante os anos 80 e 90 que controlava a maior parte dos morros cariocas e o tráfico de drogas na capital. Por conta desta organização, a cidade maravilhosa ficou com estereótipo de “cidade violenta”, onde a criminalidade detinha seus interesses. A organização se enfraqueceu nos anos 2000, ao que tudo indica, pela fragmentação do crime organizado com o surgimento de outras facções rivais, como a Amigos dos Amigos (ADA) e recentemente, pela pacificação promovida pelo governo federal, que produziu um efeito adverso com formação de milícias nos morros cariocas.

O Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa paulista, surge em 31 de agosto de 1993 como reação às péssimas condições impostas pelo sistema carcerário e ao massacre do Carandiru, ocorrido em 1992 com a invasão da tropa de choque e o extermínio de 111 presos. Inicialmente seus fundadores formavam o time de futebol oficial da casa de detenção da capital, que se apresentara assim no campeonato de futebol promovido na Casa de Custódia de Taubaté (“Piranhão”).

Surge como uma espécie de “ONG” formada por detentos, que poderia se estabelecer como uma alternativa aos interesses da população carcerária frente ao descaso do Estado, caracterizado como “o sistema”. Conta com um estatuto que funciona como uma espécie de “constituição” que regula a vida social dos membros do PCC. Existe até um livro de anotações apreendido em 2012, chamado de “disciplina de raio” que estabelece a mediação de conflitos nas celas e previne a violência. O material inclusive serve de código de conduta disciplinar entre os presos e é extremamente moralista no que diz respeito ao tratamento com as mães e mulheres: na frente delas os presos não podem falar palavrões e devem se comportar de maneira decente, de modo a criar um ambiente familiar e de respeito com as famílias.

Fora do aspecto interno do PCC, a organização ganha força desde 2007, quando começa a intimidar as autoridades de São Paulo, propondo toques de recolher e numa verdadeira guerra particular, expressão célebre para caracterizar esta disputa entre poder de Estado com a força policial e poder paralelo. Desde então, a facção só tem aumentado sua importância e atuação, pacificando ambientes tomados pelo crime particularizado, diminuindo assim, de forma irônica, a criminalidade.

Isso ocorre porque o PCC praticamente submete à força grupos criminosos locais a sua influência, onde a adesão é compulsória, marcada por intimidação e violência extrema. Como no filme O Poderoso Chefão, a proposta é irrecusável, sob pena de extermínio. Formou uma grande rede criminosa que pretende expandir seus negócios para outros territórios e controlar as regiões Amazônica e Nordeste. Dessa maneira, a expressão cunhada pelo jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador do núcleo de estudos da violência da USP é extremamente precisa, quando trata a expansão territorial do PCC como uma metástase.

Estrategicamente estas regiões são corredores de exportação por onde há grande fluidez das drogas oriundas da América Andina, como Colômbia, Peru e Bolívia. O interesse está no controle das fronteiras frágeis da Amazônia e o caminho de escoamento pelos portos nordestinos, como Pecém e Sepetiba.

A disputa nos presídios de Norte e Nordeste representa desta maneira uma espécie de enfrentamento entre PCC e CV, outrora aliados nesta região, mas que vivem uma crise em função do surgimento de outros poderes regionais como a Família do Norte (FDN) na Amazônia, nova aliada do Comando Vermelho que rechaça o PCC. No Nordeste o PCC se indispõe com o recente Sindicato do Crime do RN, que, numa atitude semelhante ao Iraque na Nova Ordem Mundial, tenta aproveitar a oportunidade de enfraquecimento das potências para aumentar sua influencia regional. A comparação é valida na medida em que PCC e CV no Sudeste vivem uma espécie de “Guerra Fria”, pois não têm interesse numa guerra declarada em seus estados de origem.

Enquanto isso, no Norte e no Nordeste vive-se um clima de barbárie com assassinatos de detentos que são decapitados e esquartejados num gesto de bravata entre facções rivais, que nos fazem lembrar episódios de perseguição e assassinato promovidos pelos também criminosos do Daesh (Estado Islâmico). Na Região Metropolitana de Natal, o clima de guerra contamina as famílias dos detentos e membros das facções, que reproduzem as hostilidades dos presídios do lado de fora.

E enfim, no Sudeste, os estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro passam por problemas relacionados à segurança pública com ondas de violência, saques e crise financeira, resultado de uma política de ajuste que precariza o funcionalismo público, sobretudo policiais militares e civis. No Espírito Santo, a polícia militar realiza greve, considerada motim e criminosa pelo governo do estado e pela grande mídia. Os agentes não têm aumento real de salário desde 2013, associadas ao ajuste fiscal promovido pelo atual governo federal. No estado do Rio Janeiro, há problemas financeiros que acometem também os policiais militares e servidores aposentados que não recebem há alguns meses, uma crise social que coloca a civilidade em segundo plano.

*Luciano Carvalho é professor de Geografia do Cursinho da Poli

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