Entrevista com Gilberto Alvarez
Tulio Kruse, Especial para o Estado
Antes mesmo que a reforma do ensino médio entre em vigor, os alunos devem enfrentar mais dificuldade no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), segundo avaliação do diretor do Cursinho da Poli, Gilberto Alvarez. À frente do curso preparatório há 17 anos, Alvarez espera que a prova considere apenas os conteúdos da base curricular obrigatória, que será comum a todos os alunos que cursarem o ensino secundário. A quantidade de questões de alta complexidade no Enem, para ele, devem aumentar.
A mudança nas regras dará aos estudantes ao menos cinco opções de itinerários formativos, em que ele pode se especializar: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciência Humanas, e o ensino técnico e profissional. Na opinião do diretor, as universidades devem economizar na organização de vestibulares e optar por uma prova comum, o Enem, no lugar de versões específicas para cada itinerário do ensino médio.
“É mais fácil selecionar com uma prova mais ampla do que criar provas específicas. E sai mais barato”, diz Alvarez. “Já pode acontecer neste ano, sim, de haver uma prova (do Enem) mais difícil do que no ano passado.”
Leia a entrevista a seguir:
Com as mudanças da reforma do ensino médio, como o Enem deve se adaptar? Seriam cinco provas, uma para cada itinerário?
Querendo ou não, qualquer vestibular nacional, e o próprio Enem, terá de se referendar à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não aos itinerários.
O Enem precisa ter um espírito de base comum, até para podermos saber quais conhecimentos serão necessários para que o aluno faça a prova, por exemplo.
O que eu acho que vai acontecer com o Enem é uma tendência de aumentar sua complexidade na prova. Por quê? Pois todas as mensagens que o Ministério da Educação dá são no sentido de que o Enem vai ser, de fato, um processo de seleção para as universidades, e menos de avaliação de ensino médio.
Acho que o Enem terá questões onde as habilidades mais complexas serão cobradas, ou seja, a complexidade vai aumentar. Vai se tornar uma prova mais difícil.
A tendência é a prova ficar mais conteudista também?
Eu não acho que será, necessariamente, conteudista. Ela deve cobrar habilidades em que o aluno terá de analisar, compreender, relacionar. Esses verbos remetem a habilidades mais complexas, em que o aluno brasileiro tem mais dificuldade, e serão mais cobrados.
O aluno brasileiro tem muita facilidade em questões que exigem que ele só identifique elementos, por exemplo. Quando tem de começar a analisar, compreender e relacionar, tem mais dificuldade. Ou seja, a questão não é que talvez tenha mais conteúdo. Mas, ao incluir questões mais complexas, a prova se torna mais difícil.
Por que acha que não haverá provas específicas para os itinerários formativos?
É muito custoso e sai do espírito de uma prova única nacional, que é o Enem. O que pode acontecer, mas aí não por conta dos itinerários, é que, além do Enem, a universidade cobre outra prova específica para ingresso em um curso – como acontece hoje, por exemplo, na seleção do curso de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Isso existe no Brasil em alguns modelos mas, em geral, (a seleção) será pelo Enem em um exame único.
A lei prevê que os sistemas de ensino estaduais possam formar em seus currículos ‘itinerários integrados’, com conteúdos de mais de um dos cinco itinerários estipulados pela lei. Como o aluno que fizer um itinerário integrado de um Estado seria cobrado no vestibular?
É por isso que eu acho que, como o Enem é um exame nacional, ele vai cobrar a base (nacional curricular). Justamente para fugir disso. A lei tem muitas brechas. A incerteza no campo da educação é nítida entre nós, educadores.
É um futuro muito incerto porque, sem a base na mão, a conta não fecha. Sem isso, não consigo dizer o que vai cair no Enem.
As universidades estaduais de São Paulo (USP, Unicamp e Unesp) historicamente preferem ter autonomia nos seus processos seletivos. Há alguma chance de esses vestibulares utilizarem métodos de prova muito diferentes do Enem após a reforma?
Acho que vai acontecer o contrário. Em primeiro lugar, porque o Enem garante que, nas universidades paulistas, você consiga ter uma seleção nacional. A vantagem do Enem é que você consegue prestar para cursos de universidade no Brasil inteiro, e trazer um cara para a USP que, na verdade, não iria prestar vestibular (a Fuvest) porque mora lá na Bahia.
O governo sempre vai levar em conta o ponto de vista financeiro. É mais barato para as universidades terem um exame feito pelo governo, ao invés de cada uma montar uma fundação e bancar um processo seletivo próprio. As universidades vão sempre fazer essa conta. Por isso, acho que o Enem vai ganhar mais força ainda.
A USP vem utilizando cada vez mais o Enem, pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Acho que esse é um movimento que vem para ficar. A USP, por exemplo, dificilmente vai abandonar a Fuvest, mas essa configuração de usar Fuvest e Enem veio para ficar.
E as provas de universidades estaduais, como a Fuvest e os processos da Unicamp e da Unesp, não mudam com a reforma do ensino médio?
Acho que qualquer uma delas – mesmo a Fuvest e a prova da Unicamp, que têm primeira e segunda fase – vai se basear no que for exigido na base curricular para compor aquilo que o aluno tem de estudar. É mais fácil selecionar com uma prova mais ampla do que criar provas específicas.
E o vestibular no Brasil está em extinção. Se olhar para lugares como Nordeste, Norte e Centro-Oeste, vai perceber que pouquíssimas universidades tÊm vestibular próprio. Ainda existe, mas são poucas.
Por que as universidades não levam em conta o desempenho acadêmico ao longo do ensino médio, como em outros lugares do mundo?
Isso existe, a própria USP tem o Programa de Avaliação Seriada (PASUSP), a Universidade de Brasília também tem um programa seriado. Mas não é da cultura brasileira esse tipo de escolha. O Brasil ainda é um país que acredita muito em vestibulares, e aí estamos na contramão mesmo. O Brasil está investindo em vestibulares e o mundo está investindo em programas seriados.
Há de se considerar que o Enem, no Brasil, é um avanço. O vestibular, na verdade, deixa um monte de gente do lado de fora (das universidades) e coloca alguns dentro. O Enem, por suas características e por ser um exame nacional, acabou sendo um programa que ajudou a democratizar o acesso ao ensino superior.
A base curricular para o ensino médio ainda deve ser apresentada e discutida no Conselho Nacional de Educação. O ideal seria que os ajustes no Enem e em vestibulares fossem implementados quando? Quanto tempo o senhor acha que essas mudanças demoram para serem implementadas?
Esse processo de mudança em relação à reforma do ensino médio é de longo prazo. Mas no caso do Enem, quando falo que é possível a prova cobrar habilidades mais complexas, isso já pode acontecer neste ano. Isso porque o ‘formatão’ do Enem não vai mudar agora, o que muda é a seleção das questões que eles vão colocar na prova.