Rui Calaresi

O filósofo francês Raymond Aron afirmava no período da Guerra Fria (1945-1989) que a paz entre os Estados Unidos e a União Soviética (URSS) seria improvável, mas uma guerra entre as duas superpotências era impossível. Parece que essa máxima se enquadra perfeitamente no atual contexto das tensões no leste asiático, que envolve Coreia do Norte, Coreia do Sul, EUA e China.

A divisão da península coreana ao final da 2ª Guerra Mundial, que estava sob o domínio japonês, se insere no contexto do início da Guerra Fria no qual as duas superpotências buscavam estabelecer áreas de influência em todo o planeta. Com a expulsão dos japoneses, EUA e URSS dividiram o território coreano em duas áreas, onde a porção norte ficou sob influência soviética e após 1949, também chinesa. Nesta área se instalou um regime ditatorial de partido único e de economia estatizada e planificada, nos moldes dos regimes do chamado socialismo real. Já a porção sul da península, ficou sob a influência norte-americana. Os Estados Unidos buscavam estabelecer um “cordão sanitário” no leste asiático para impedir a expansão do comunismo soviético e chinês. Assim, contribuíram para estabelecer na região uma economia de mercado com forte participação do Estado, que recebeu ajuda para a reconstrução e investimentos de governos e empresas do Ocidente e do Japão. Desta forma, a economia sul-coreana passou a crescer rapidamente, tornando-se em pouco tempo uma potência emergente, um daqueles países que foram chamados de “Tigres Asiáticos”.

Apesar da tentativa em 1950 do regime da Coreia do Norte em unificar as duas Coreias, resultando na invasão do sul por tropas do norte e na intervenção militar dos EUA (Guerra da Coreia), em 1953, os norte-coreanos se retiraram após derrota e a divisão se manteve. Um armistício foi assinado, mas não um tratado de paz. Tecnicamente, os dois países continuam até hoje em guerra.

Desde então a Coreia do Norte vive sob um regime totalitário, controlado por uma dinastia familiar, desde o avô Kim Il-Sung, o seu filho Kim Jong-Il e agora o neto, Kim Jong-Un, fortemente marcado pelo culto à personalidade de seus líderes e que resistiu ao fim da Guerra Fria e à abertura ao capitalismo feita pela China, seu principal aliado e colaborador.

Mesmo se mantendo pobre e atrasado economicamente, com sérios problemas sociais como a fome e a carência de produtos básicos e infraestrutura para a população, a Coreia do Norte perigosamente se militarizou. Seu regime mantém um exército de mais de um milhão de soldados, 4% da população total do país, e vem desenvolvendo um programa nuclear com fins militares que possibilitou a fabricação de pelo menos 20 bombas atômicas. Agora, o regime busca adaptar as ogivas nucleares para colocá-las nos mísseis que testa. Desta forma, desvia a atenção de seu povo dos problemas internos e, com uma forte propaganda e controle do acesso à informação, demoniza os EUA. No início do mês de julho a Coreia do Norte testou com sucesso seu mais novo “brinquedo”, o míssil Taepandong 4, cujo alcance de mais de 6 mil quilômetros pode alcançar o Alasca, território estadunidense.

Vários governos dos EUA tentaram, sem sucesso, conter a escalada militar norte-coreana. Bill Clinton, nos anos 1990, buscou a desmilitarização da Coreia do Norte em troca de ajuda econômica e humanitária, assim como seu correligionário democrata Barack Obama. Em 2000, houve uma aproximação entre as duas Coreias, quando suas delegações desfilaram juntas na abertura dos Jogos Olímpicos de Sidney (Austrália). A doutrina Bush da “guerra ao terror”, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, classificou  o regime coreano como parte de “eixo do mal” e iniciou uma serie de embargos e bloqueios comerciais, tentando forçar um recuo de seu programa nuclear. A estratégia novamente fracassou e afastou mais ainda a possibilidade de paz na região.

O atual governo estadunidense, sob o comando do magnata Donald Trump, colocou o problema com a Coreia do Norte como prioridade. Apesar de sua retórica baseada na  “America First” (Primeiro os EUA, em tradução livre), Trump afirma que os Estados Unidos não podem ser a “polícia” do mundo. Em abril último, durante visita do líder chinês Xi Jinping aos EUA, Trump buscou por em prática sua experiência de “homem de negócios” para pressionar a China a conter o regime de Kim Jong-Un. Durante o encontro, Trump ordenou um ataque com mísseis a uma base aérea síria de onde partiram os aviões do regime de Bashar al-Assad que haviam atingido com armas químicas uma região controlada pelos rebeldes. Assim, procurou dar um recado ao líder chinês: hoje é a Síria, amanhã pode ser a Coreia do Norte. Tal ação constrangeu Xi Jinping que, apesar do incidente diplomático, manteve sua postura de estadista e não reagiu à altura.

A China não deu mostras que conterá o regime norte-coreano, mas a confirmação de seu status de potência global depende de como reagirá a essa tensão. Para o regime chinês não interessa uma guerra na península coreana. Milhões de refugiados poderiam afluir ao seu território, e uma possível nuclearização do Japão, com vistas à sua defesa, faria retornar o fantasma de um passado triste para os chineses, quando foram dominados pelos japoneses. Trump busca na ONU apoio para um bloqueio econômico ainda mais amplo sobre a Coreia do Norte, mas não tem apoio da própria China e da Rússia, membros permanentes do Conselho de Segurança, ou seja, com poder de veto.

Mais uma vez, a península coreana é o cenário para as disputas entre potências globais, cujo desfecho esperançamos ser pela diplomacia e para a paz.

Rui Calaresi é professor de geografia*


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