Lançado no final dos anos 1980, “História do cerco de Lisboa” faz parte da série de romances históricos do escritor português José Saramago, que inclui outros títulos conhecidos, como “Memorial do Convento” e “A jangada de Pedra”. O fato histórico em questão aconteceu em 1147.

“[O livro] É um elogio ao papel do escritor, a partir de um pensamento de Aristóteles, que dizia ‘a história é o que foi, a literatura, o que poderia ter sido”, explica a professora de redação do Cursinho da Poli, Eva Albuquerque, ouvida pelo Instituto Claro no podcast. CLIQUE AQUI PARA ACESSAR A PAGINA DA MATÉRIA.

Na trama, Raimundo Benvindo Silva é um humilde revisor de textos. Ao trabalhar em uma obra sobre o cerco de Lisboa, comete, propositalmente, um erro. “Se há fatos reais que não entraram na história e outros entraram, às vezes, nem tão verdadeiros, é a literatura que pode corrigir isso”, resume a entrevistada sobre a ideia de Saramago.

Como revisor de livros, ele acrescenta a palavra “não” a uma frase e, desta forma, altera o fato histórico que revela o apoio dos cruzados aos portugueses. Diante da descoberta do erro, a editora acrescenta uma errata.

O fato de Raimundo ser respeitado, faz com que, em vez de o demitir, a editora contrate uma mulher, Maria Sara, para supervisionar seu trabalho. Ela tenta entender a causa daquele erro e acaba estimulando a reescrita do episódio atrelado à história de Portugal. Enquanto o personagem reescreve os acontecimentos, acaba também iniciando um relacionamento amoroso com ela.

“Ele vai fazer agora com muito cuidado a verdade dele, corrigindo aquele livro que foi feito e mudando completamente a história.”

De acordo com a professora, a escolha deste livro em vestibulares pode gerar discussões para temas bem atuais, como as fake news. Essa discussão para a Unicamp pode ser muito interessante: uma notícia da internet, na minha rede social, nos jornais… eu não vou sair compartilhando por aí, porque eu preciso ir atrás da verdade. Por que que eu não vou atrás? Dá mais trabalho, mas eu vou ter que pesquisar se é verdadeiro ou não pra eu compartilhar, porque é o verdadeiro que tem que prevalecer”, define Albuquerque.

Transcrição do áudio:

Trechos em que a professora Eva Albuquerque traz as motivações para Saramago ter escrito “História do cerco de Lisboa”, com fado instrumental criado por Reynaldo Bessa e tocado pelo compositor e por Caio Torrezan, ao fundo:

“A trajetória de vida do Saramago, que é uma figura do povo, tem a ver com a trajetória deste personagem tão simples, tão humilde.”

“A própria história de vida dele é mais olhar para as pessoas mais pobres, que tiveram mais dificuldade na vida e o Raimundo Silva é uma figura muito simples, muito sábia e do povo.”

“A história também é feita disso e não só dos grandes heróis. Então, é uma figura muito simples que se rebela e coloca um ‘não’, essa é a revolta dele.”

Vinheta: “Livro aberto: obras e autores que fazem história”

Trilha sonora original “Armadilha da palavra” (fado) de fundo

Marcelo Abud:
O Livro Aberto de hoje é “História do cerco de Lisboa”, de José Saramago. Para este capítulo, uma produção especial: o Instituto Claro convidou o músico Reynaldo Bessa para compor a trilha sonora original. As músicas que você ouve são tocadas pelo próprio Bessa e por Caio Torrezan e foram gravadas no estúdio Play it Again, em São Paulo.

E para abordar o livro “História do cerco de Lisboa”, a professora de literatura do Cursinho da Poli, Eva Albuquerque.

Eva Albuquerque:
O Raimundo tá na verdade revendo um livro de um historiador. E o historiador se atrapalhava demais, ele não fazia a verdade, assim como o Raimundo gostava. O Raimundo é muito culto, ele é humilde, ele é só um revisor, mas ele é muito sério, ele é muito culto e ele vai em busca da verdade. E o historiador, dentro do romance, está escrevendo uma história do cerco de Lisboa  . Então tem a história real do cerco de Lisboa, os portugueses tomam Lisboa com a ajuda dos cruzados; o historiador, de dentro, personagem que está escrevendo a “História do cerco de Lisboa” está escrevendo então uma história que os cruzados ajudam essa tomada de Lisboa, mas ele não se preocupa com detalhes, o historiador, não é, porque se está escrevendo de fatos que aconteceram ele poderia ser verdadeiro. E o Raimundo vai notando que ele não obedece aos fatos que aconteceram mesmo, de verdade.

O Raimundo vai ficando bravo com esse historiador.  Ele escreve assim: “os cruzados ajudaram a tomada de Lisboa”. O Raimundo viu que ele mentia tanto, que ele falou assim ‘os cruzados não ajudaram!”.

Música “O não pode mudar a história” (Reynaldo Bessa) de fundo

Eva Albuquerque:
Então ele ‘encana’ de colocar um ‘não’. Pra ele colocar “os cruzados não ajudaram”, é só um ‘não’ bem pequenininho num ponto e aí ele transforma toda a história.

Música “O não pode mudar a história” (Reynaldo Bessa)
“Um não pode mudar uma história / Derrubar uma cidade / Trocar o vencedor”

Eva Albuquerque:
O livro vai pra editora. Depois de 13 dias, o pessoal percebeu o erro e fala “hum, olha lá, mas não é assim”. Então, eles fazem uma errata e aí o editor chama uma chefe, uma mulher, que é a Maria Sara, pra tomar conta agora. “Quem disse que esses revisores podem aí ficar fazendo o que eles querem, não é bem assim!”. E nessa história toda, ela é mulher, ela é bonita, nunca na casa dele tinha ido mulher, a não ser a mulher que limpava a casa dele.

Som de página de livro sendo virada

Música “Entre a história e a ficção” (instrumental) fica de fundo durante leitura de trecho do livro

“Nesta casa não vive mulher. Duas vezes por semana vem uma de fora, mas não se pense que aquele lugar vago da cama tem que ver com a bissemanal visita, são ‘diferentes precisões’, ficando desde já explicado que, para o alívio das importunações mais imperiosas da carne, o revisor desce à cidade, contrata, satisfaz-se e paga, sempre teve de pagar….”

Eva Albuquerque:
E aí, quando a Maria Sara percebe isso, ela fala assim “ah, eu vou botar ele na linha, quem disse que revisor pode ir andando pelas próprias pernas, de jeito nenhum!”. Por outro lado, ela gosta desse ato de revolta dele; e ela é bonita, é mulher e tal. E ele começa a olhar pra ela de um jeito….. respeitoso e tal, mas ele começa a perceber que ali tinha uma mulher, que ela era feminina, que ela é bonita, enfim, todo histórico de todo respeito, mas ela é chefe dele. Então ele tem que ficar na dele. Mas ela mesma vai gostando dele, não sexualmente, nem nada, mas assim pela figura. “Esse homem foi capaz disso” e tal, ela propõe pra ele, ‘por que você não conta sua própria história do cerco de Lisboa?”.

Música “O não pode mudar a história”
Mas o não também / Pode ser um sim pro amor”

Eva Albuquerque:
E aí, nessa história de ele contar a história, é aí que eles vão se conhecendo, ela vai na casa dele, eles tomam café, eles vão passear por Portugal, nos lugares em que…. Lisboa, né? É uma cidade que tem os passos dos Mouros, tem a história lá real mesmo, né? Eles ficam amigos e eles começam um romance deles dois, agora, de não ficção. Então, isso muda muito a história dele. A partir de um ‘não’, como é que muda a vida de uma figura. A partir de um ‘não’ na nossa vida, como é que muda toda a nossa história, porque ele mudou a história dele com um “não”.

Música “Armadilha da palavra” (Reynaldo Bessa)
“Raimundo Benvindo e Maria Sara / Se perdem de amor / Na armadilha da palavra. / Raimundo Benvindo e Maria Sara / Se perdem de amor / Na armadilha da palavra”

Som de página de livro sendo virada

Eva Albuquerque:
O que que eu imagino que o Saramago pensa? Se a história tem controvérsia, ficção, e fatos reais não entraram na história e outros entraram e, às vezes, nem tão verdadeiros, então, vamos para a literatura, porque a literatura pode corrigir a história. É um elogio ao papel do escritor, o escritor ele pode fazer a história e uma história muito mais legal e aí eu tô pensando no Aristóteles. O Aristóteles fala assim: “A história é o que foi, a literatura, o que poderia ter sido”.

Isso é importante no livro também, porque é um ato de revolta dele. Alguém muito simples que se rebela. Então a história, na visão do Saramago, a história é feita também por gente que se rebela, que pode se rebelar contra o sistema… Isso é importante como ato, como indivíduo, a gente se rebelar, se revoltar contra algo. Pessoas muito simples fazem isso e é importante.

Música “Entre a história e a ficção” (Reynaldo Bessa)
“Entre a história e a ficção / Há um não / Há um não. / Entre a história e a ficção / Há um não / Há um não”

Marcelo Abud:
A professora comenta o que há de atual para que o livro de Saramago seja solicitado em um vestibular. Ela destaca que o primeiro filósofo sofista, Protágoras, ainda no período clássico da Grécia Antiga, nos séculos V e IV a.C., já defendia que “a verdade depende de cada um.

Eva Albuquerque:
Fake news sempre existiu. As mentiras na história elas sempre existiram. Hoje, nós estamos vivendo o auge, mas se você pensa, mas “sofistas!”; de certa forma eles enfeitavam; os socráticos, o pessoal sério de Atenas, detestavam os sofistas, porque eles vinham com as fake news deles, mas que não se chamavam assim. E aí, embora na época em que o Saramago – ele escreveu livro em 1989 – é justamente uma observação sobre a verdade. Então, a história do Saramago está sendo a verdade, tanto é que quando ele faz o livro, ele coloca uma epígrafe para a Pilar, ele oferece para a Pilar, para a mulher dele. Ele coloca, não exatamente com essas palavras, mas “se você conhece a verdade, você pode revisá-la. E se não a conheces, não vai conhecer nunca”. Então, assim, “não te resignes, não te resignes diante da mentira. Vá sempre atrás da verdade”. Então, embora não estivesse na moda, em 89, fake news, mas está na moda a verdade sempre. Ela tem que sempre prevalecer. A ideia do Saramago é que prevaleça a verdade, fora de moda ou na moda.

Essa discussão pode ser muito interessante: uma notícia da internet, na minha rede social, nos jornais… eu não posso sair compartilhando por aí, porque eu preciso ir atrás da verdade. “Não te resignes!”. Então eu não posso ir compartilhando, chega na minha mão, na tela do meu computador uma fala de alguém que eu não sei se foi…. Por que que eu não vou atrás? Dá mais trabalho, mas eu vou ter que pesquisar se é verdadeiro ou não pra eu compartilhar, porque é o verdadeiro que tem que prevalecer.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Eva Albuquerque comenta sobre o estilo muito particular de escrita de José Saramago.

Eva Albuquerque:
Ele preza muito a oralidade. Quando as pessoas falam, elas simplesmente falam ou não falam, outro responde… Não tem ponto, não tem vírgula… O que que ele faz na obra dele, é uma questão de estilo. Os livros do Saramago são assim: o leitor tem que estar muito atento à leitura; não é uma leitura que eu posso pegar no ônibus, com sono e lendo sem compromisso, aliás como em nenhum livro, mas a dele você tem que redobrar a atenção. Porque faz parte do estilo do Saramago não fazer o discurso direto: o narrador diz ‘fulano disse, dois pontos, travessão e aí vem a fala do personagem”. Ele não faz isso. O personagem entra com apenas uma vírgula e letra maiúscula. Então você tem que estar muito atento porque dois personagens estão conversando e não são diálogos longos, são diálogos bem curtinhos. “Ah, você acha isso, [vírgula] Acho sim”, maiúscula. O outro já responde e eu preciso estar muito atento, porque se não você não vai saber a hora que o escritor do livro “História do Cerco de Lisboa”  está falando e o Raimundo. Eu acho que é uma revolução, de certa forma, mesmo que seja individual, é  Saramago se rebelando contra a gramática normativa, contra a norma, né? Ele inventa, isso não existe.

Som de página de livro sendo virada

Música “Armadilha da palavra” (Reynaldo Bessa) fica de fundo

Eva Albuquerque:
“Disse o revisor, Sim, o nome deste sinal é deleatur. usamo-lo quando precisamos suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e tanto vale para letras soltas quanto para palavras completas, Lembra-me uma cobra que se tivesse arrependido no momento de morder a cauda, Bem observado, senhor doutor, realmente, por muito agarrados que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria diante da eternidade, Faça-me aí o desenho, mas devagar, É facílimo basta apanhar-lhe o jeito, quem olhar distraidamente cuidará que a mão vai traçar o terrível círculo, mas não, repare que não o rematei o movimento aqui onde o tinha começado, passei-lhe ao lado, por dentro, e agora vou continuar para baixo até cortar a parte inferior da curva, afinal o que parece mesmo é a letra Q maiúscula, nada mais”.

Música “Armadilha da palavra” (Reynaldo Bessa)
“Raimundo Benvindo e Maria Sara / Se perdem de amor / Na armadilha da palavra”

Música permanece de fundo

Marcelo Abud:
Entre a história real, do cerco de Lisboa em 1147, e a fictícia, que surge após a força de um “não”, o autor discute lacunas sobre o fato histórico.

Música “O não pode mudar a história” (Reynaldo Bessa)
“Um não pode mudar uma história / Derrubar uma cidade / Trocar o vencedor / Mas o não / também / pode ser um sim pro amor / pode ser um sim pro amor”

Marcelo Abud:
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.


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