Movimento estudantil que começou na França e reverberou em todo o mundo é ‘nascedouro’ de lutas sociais posteriores, segundo professores; veja se você consegue responder às questões que já apareceram no Enem.
Por Ana Carolina Moreno, G1
Considerado “o ano que nunca acabou”, 1968 foi palco de movimentos estudantis que começaram “quase sem querer” em Paris, com protestos que ficaram conhecidos como Maio de 68, e reverberaram pelo mundo, inclusive no Brasil, onde, em dezembro, a ditadura militar iniciou seu período mais obscuro, com a edição do Ato Institucional Nº Cinco (AI-5). Meio século depois, veja como ele pode ser entendido pelos vestibulandos e como pode ser abordado nas provas.
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) já lembrou desse período duas vezes, segundo um levantamento feito por uma plataforma de educação a pedido do G1.
Na Fuvest, que seleciona para vagas na Universidade de São Paulo (USP), e no vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele nunca foi pedido diretamente.
Mesmo assim, Márcio Barbosa, consultor pedagógico, explica que ele tem importância para os vestibulandos. “Foram duas questões especificamente, mas já houve várias outras que falam de movimentos que tiveram nascedouro lá”, diz Barbosa.
Para o professor Elias Feitosa de Amorim Jr., que dá aulas de história no Cursinho da Poli, é essencial que os estudantes se lembrem do espaço que o Enem dedica aos movimentos sociais. “Vale lembrar que o Enem tem uma competência que trata da compreensão dos movimentos sociais e a partir dela, um acontecimento como ‘Maio de 68’ pode ser cobrado, já que a questão começa pela escolha da competência, depois da habilidade e por fim, do tema”, explica Feitosa.
Ele se refere à competência da área de ciências humanas que espera que os candidatos saibam “compreender a produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e econômicas, associando-as aos diferentes grupos, conflitos e movimentos sociais”.
Dentro dessa competência, a matriz de referência do Enem lista cinco habilidades:
- Identificar registros de práticas de grupos sociais no tempo e no espaço
- Analisar o papel da justiça como instituição na organização das sociedades
- Analisar a atuação dos movimentos sociais que contribuíram para mudanças ou rupturas em processos de disputa pelo poder
- Comparar diferentes pontos de vista, presentes em textos analíticos e interpretativos, sobre situação ou fatos de natureza histórico-geográfica acerca das instituições sociais, políticas e econômicas
- Avaliar criticamente conflitos culturais, sociais, políticos, econômicos ou ambientais ao longo da história
Década de agitação global
O processo que desencadeou o movimento teve origem em uma série de insatisfações que se acumulavam na década de 1960.
“O apogeu do acirramento entre os Estados Unidos e a União Soviética ocorreu em 1962 com a crise dos mísseis de Cuba. A partir daquele momento, os líderes das superpotências iniciaram uma ação de redução das tensões e uma aproximação, processo conhecido como détente, ou seja, distensão”, explica Elias Feitosa, professor do Cursinho da Poli, citando também protestos dentro da ‘Cortina de Ferro’, “como as revoltas da Hungria e da Tchecoslováquia também em 1968 (duramente reprimidas pela URSS)”.
Ele diz ainda que “a guerra do Vietnã gerou um processo de repúdio à ação norte-americana, culminando com o movimento hippie como manifestação da contracultura, tendo. no ano de 1969, o festival de Woodstock como um de seus expoentes”.
De protesto localizado à greve geral
Na prática, porém, Maio de 68, começou com um protesto de reivindicações bastante específicas. Em 22 de março, estudantes da Universidade Paris-Nanterre ocuparam um prédio da administração pedindo que os estudantes homens fossem autorizados a entrar nos dormitórios das estudantes mulheres, e também se opondo à guerra do Vietnã.
A ousadia estudantil serviu de estopim a outros protestos e, em poucas semanas, no início de maio, estudantes estavam arrancando os paralelepípedos de Paris para atirar nos policiais, e os protestos passaram a não ter começo nem fim: barricadas foram montadas de forma permanente.
Essa “agitação cultural” foi abordada na edição 2012 do Enem em uma questão da prova de ciências humanas:
Questão do Enem 2012 sobre o movimento de Maio de 1968 (Foto: Reprodução/Inep)
Inspirados pela rebeldia juvenil, os operários e funcionários de empresas decidiram também se levantar contra más condições de trabalho e de negociação salarial, e a França se viu afetada por uma greve geral que mobilizou vários milhões de cidadãos.
O presidente da França, Charles de Gaulle, quase foi obrigado a renunciar por causa da força que o movimento ganhou, mas um acordo entre os sindicatos colocou fim à greve geral, e uma reforma universitária acabou acalmando os ânimos dos universitários.
Nascedouro de movimentos sociais
O inesperado tamanho e o forte impacto que os protestos estudantis tiveram na sociedade francesa, somados aos demais acontecimentos que abalaram o mundo naquele ano, como o assassinato de Martin Luther King, em 4 de abril, fizeram com que Maio de 68 seja considerado a origem de muitos movimentos sociais, e inspire diversas articulações até hoje, segundo explica o professor Márcio Barbosa.
“Foi lá o pontapé inicial da liberdade que hoje a universidade promove, que a juventude promove. Todos os movimentos que saem de 68 têm esse contexto porque o mundo tinha uma polarização muito forte, no capitalismo e socialismo da Guerra Fria. Tudo isso acabou repercutindo para que viessem as questões raciais e sociais e a liberdade de que a gente tanto fala hoje.”
Barbosa lembra que, por isso, o assunto pode ser abordado nos vestibulares tanto com uma perspectiva da história quanto da sociologia.
“Foi um trabalho muito forte, uma grande massa de trabalhadores, e teve o acordão que foi feito de forma patronal”, explica ele sobre o acordo entre governo e sindicatos que levou benefícios aos trabalhadores e ajudou a encerrar a crise política. “[O candidato] tem que ver isso de forma muito tranquila, analítica”, diz ele sobre uma possível questão abordando esse aspecto do assunto nos vestibulares.
O Brasil em 1968
No Brasil, o movimento estudantil na França teve impacto direto nos protestos da União Nacional dos Estudantes (UNE), segundo explica Feitosa.
“Em meados de 1968, a UNE, apesar de extinta, ainda conseguia liderar manifestações importantes, como a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro. Enquanto isso, o Exército fazia grande campanha para que as comemorações do Dia da Independência tivessem ampla participação popular. Mas, na Câmara Federal, o deputado do MDB Márcio Moreira Alves, num discurso, convidou a população a boicotar os desfiles de 7 de Setembro. Os militares pressionaram o Congresso para cassar o mandato do deputado, mas os parlamentares não aceitaram”, lembra ele.
“Assim, em 13 de dezembro de 1968, o governo fez baixar o AI-5 [Ato Institucional Número Cinco], que dava ao Executivo o direito de colocar em recesso o Congresso Nacional e estabelecia a suspensão de todas as garantias constitucionais dos acusados de crime contra a Segurança Nacional, a intervenção nos Estados e municípios, a restrição do habeas corpus, a censura prévia aos meios de comunicação etc.”
Mas Feitosa alerta que o assunto não se esgota no vestibular apenas nas informações factuais sobre datas e acontecimentos. Em 2011, o Enem abordou as atividades culturais da UNE na década de 1960 em uma questão:
No Enem 2011, uma questão abordou atividades da UNE no Brasil na década de 1960; a resposta correta é a alternativa A (Foto: Reprodução/Inep)
Segundo o professor, “não são questões factuais, assim sendo, o candidato(a) deveria fazer a relação do papel dos estudantes na sociedade, levando em conta o contexto histórico e o conjunto de elementos sociais envolvidos: combate ao conservadorismo, defesa das liberdades, revisão dos padrões morais”.
O Enem e a educação de hoje
De acordo com Barbosa, a própria abordagem interdisciplinar do Enem e as metodologias educacionais que buscam a formação integral dos estudantes como cidadãos são resultados dos movimentos sociais que surgiram após Maio de 68. “A educação brasileira tem uma mudança de 360 graus quando se pensa no aluno de maneira integral”, afirma ele.
“Hoje esses modelos de avaliação questionam o aluno a ir além do fato, ver quais são as implicações disso para a vida. Ele tem que fazer muita relação daquilo que está nos livros de história e de sociologia com a aplicação no mundo real. Isso tem feito os alunos estudarem mais e melhor.”